
Alexander A. Bogdanov foi um polímata soviético e personagem importante na construção do Partido Operário Social-Democrata Russo, ao lado de Lênin, desde sua fundação em 1898. As discussões da Tectologia, publicada entre 1913 e 1928, remontam aos debates entre Bogdanov e Lênin a respeito da natureza do materialismo. Mas é também um trabalho que ultrapassa o período pré-revolucionário. O tradutor de Bogdanov para o inglês, George Gorelik, escreve que a tectologia “se ocupa de regularidades universais estruturais, de tipos universais de sistemas, das leis mais gerais de sua transformação e das leis fundamentais da organização dos elementos da natureza, da experiência e do conhecimento”. A cibernética, o estruturalismo, a teoria geral dos sistemas e a teoria da catástrofe encontram na Tectologia seus fundamentos precursores.
Publicaremos, por partes, uma tradução direta do russo do livro de Bogdanov. A tradução é de Raquel de Azevedo. Bons estudos!
2.
Pois bem, coloquemos assim: nós, humanos, organizadores da natureza, de nós mesmos, de nossa experiência, consideraremos nossa prática, nosso conhecimento, nossa criação artística a partir do ponto de vista organizacional. Mas e as forças elementares da natureza, serão elas organizadoras? Não seria um subjetivismo ingênuo ou uma fantasia poética aplicar o mesmo ponto de vista a seus eventos e ações?
Sim, sem dúvida, a natureza é o primeiro grande organizador; e o próprio ser humano é somente uma de suas obras organizadas. A mais simples das células vivas, visível apenas com milhares de ampliações, excede em complexidade e perfeição de organização tudo o que um ser humano é capaz de organizar. Ele é um aprendiz da natureza e, por enquanto, um aprendiz muito débil.
Mas se os fenômenos da vida podem ser examinados e compreendidos como processos organizacionais, não haveria, fora deles, um vasto domínio do mundo “inorgânico”, da natureza morta que não é organizada? Sim, a vida é uma pequena parte do universo perdida no oceano do infinito; mas inanimado, “inorgânico” não quer dizer desorganizado. Essa velha ilusão, que até recentemente dominava o pensamento da humanidade precisamente em razão de sua debilidade organizadora, chegou ao fim.
A ciência destrói hoje as fronteiras intransponíveis entre a natureza viva e a natureza morta, preenche o abismo entre elas. O mundo dos cristais revelou as propriedades típicas dos corpos organizados, propriedades que antes se considerava que caracterizavam exclusivamente o reino da vida: em uma solução saturada, o cristal conserva sua forma através de um “metabolismo”; ele repara seus danos como se “curasse um ferimento”; sob certas condições de supersaturação, ele “se multiplica”, etc. Entretanto, os cristais sequer são os mais complexos dentre os compostos inorgânicos e as conexões do reino dos cristais com o resto da natureza inorgânica são tais que não se pode falar de diferenças fundamentais, incondicionais. Entre os líquidos, há formações, como os chamados “cristais fluidos”, que possuem a maioria das propriedades cristalinas. Já os “cristais supostamente vivos” de [Otto] Lehmann, obtidos a certas temperaturas do éter etílico, são capazes não apenas de se multiplicar por divisão e “cópula”, ou seja, ligando-se em pares, como também de se alimentar e crescer absorvendo matéria e de se mover de maneira semelhante às amebas: são todas propriedades fundamentais pelas quais os organismos unicelulares inferiores geralmente são definidos.
Por outro lado, também uma simples gota de orvalho numa folha de grama em um ambiente supersaturado pelo vapor cresce e se multiplica por divisão: quando, em razão de seu crescimento, ela se divide em duas, cada uma delas, também aumentando por conta dos vapores precipitados, pode atingir os mesmos tamanhos e também se dividir em seguida. Já sua camada superficial, fisicamente análoga a uma membrana flexível, “protege” sua forma à semelhança das finas membranas flexíveis de muitas células vivas, como as das bactérias, por exemplo.
Reconhecendo certo caráter organizativo nos cristais, seria estranho considerar como “desorganizados” os harmoniosos e titanicamente estáveis sistemas solares e seus planetas, os quais se formaram em miríades de séculos. Para a teoria moderna, a estrutura de cada átomo, com sua espantosa estabilidade, baseada em movimentos incomensuravelmente rápidos e ciclicamente fechados de seus elementos e de suas atividades elétricas, é, à sua maneira, do mesmo tipo que a dos sistemas solares e seus planetas.
A desorganização total é um conceito sem sentido. Em essência, é o mesmo que o próprio nada nu e cru. Na desorganização total, é preciso admitir a ausência de qualquer conexão; mas aquilo que não possui nenhuma conexão não pode representar nenhuma resistência ao nosso esforço, e é somente pela resistência que aprendemos sobre o ser das coisas; portanto, para nós, não há, nesse caso, nenhum ser. A ausência absoluta de conectividade só pode ser pensada verbalmente, nenhuma representação real e viva pode ser inserida nessas palavras, porque uma representação absolutamente desconexa não é, de modo algum, uma representação – em geral, não é nada.
Mesmo o vazio imaginário do espaço ao redor do mundo – o éter luminífero – não é desprovido de uma organização inferior e elementar, além de possuir resistência; somente com uma velocidade limitada o movimento é capaz de penetrá-lo; quando a velocidade de um corpo em movimento aumenta, então, segundo as idéias da mecânica moderna, cresce também essa resistência – inicialmente com uma lentidão imperceptível, depois mais rapidamente; e, no limite, torna-se igual à velocidade da luz, torna-se completamente intransponível ao infinitamente grande.
O raciocínio comum admite esse ponto de vista de maneira latente ao designar os complexos inorgânicos como “sistemas”, o que exprime essencialmente a ideia de um todo organizado, e ao aplicar a eles o conceito de “destruição”, o que não teria nenhum sentido em relação àquilo que fosse absolutamente desorganizado.
Além dos limites da vida, portanto, não se encontram senão os tipos e graus inferiores de organização: a ausência absoluta de organização é inconcebível sem contradição.
Na técnica nos deparamos com a organização das coisas para objetivos humanos; agora a encontramos na natureza extrapolando objetivos humanos. Toda a natureza, por sua vez, atua como um campo de experiência organizacional.
Assim, partindo dos fatos e das ideias da ciência moderna, chegamos inevitavelmente a uma concepção unicamente integral, unicamente monista do universo. Ela se apresenta para nós como um tecido que se desdobra infinitamente, nas mais variadas formas e graus de organização, desde os elementos do éter que nos são desconhecidos até os coletivos humanos e os sistemas estelares. Todas essas formas — em seus entrelaçamentos recíprocos e em sua luta mútua, em suas permanentes transformações — constituem um processo de organização global, que se fragmenta indefinidamente em suas partes, mas é contínuo e indissolúvel em seu conjunto. Assim, o domínio da experiência organizacional coincide com o domínio da experiência em geral. A experiência organizacional é, na verdade, toda a nossa experiência, tomada do ponto de vista organizacional, ou seja, como um mundo de processos que organizam e desorganizam.