
Uma das frentes de pesquisa da base de dados EMVA é simular o impacto das transformações do regime climático, especialmente no que diz respeito aos seus efeitos na regularidade das safras agrícolas, indicando como tais transformações podem afetar os custos das empresas produtoras de alimentos e o equilíbrio intersetorial da economia brasileira. Para tanto, procuramos avaliar as possíveis consequências da variação nos preços dos alimentos, decorrentes das mudanças no clima, na condição de equilíbrio intersetorial da economia a partir da análise dos esquemas marxianos de reprodução do Livro II d’O Capital. Formulam-se duas hipóteses: 1) as dificuldades de produção de alimentos acarretarão maior absorção relativa de capital constante no setor de produção de meios de consumo; 2) considerando a argumentação de Rosa Luxemburgo de que parte da reprodução do capital total se dá através da produção de meios de produção e meios de consumo que não estão submetidos à produção capitalista, o desmatamento é um dos componentes da condição de equilíbrio entre os setores na economia brasileira.
As empresas que compõem a EMVA 1.0 foram separadas em quatro setores: de produção de meios de produção, de produção de meios de consumo, de comércio de dinheiro e de comércio de mercadorias. O cálculo da condição de equilíbrio intersetorial, entre os anos de 2010 e 2021, envolve, de um lado, o capital constante e a mais-valia destinada a ampliar o capital constante no setor de produção de meios de consumo e, de outro, o capital variável, a mais-valia destinada a ampliar o capital variável e a mais-valia destinada para consumo improdutivo nos setores de produção de meios de produção, de circulação de dinheiro e de circulação de mercadorias. É nessa segunda parte que a evolução dos dados do desmatamento deve ser considerada.
Analisamos a relação da condição de equilíbrio entre os setores com os dados de alteração da cobertura florestal dos biomas brasileiros a partir das informações disponibilizadas pelo sistema DETER e pelo projeto PRODES, ambos do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Os dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), elaborados segundo as diretrizes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e com base na metodologia dos Inventários Brasileiros de Emissões e Remoções Antrópicas de Gases do Efeito Estufa, elaborado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), indicam que, no caso brasileiro, as mudanças no uso da terra são responsáveis pela maior parte da emissão de CO2 equivalente (que constitui o conjunto de gases causadores do efeito estufa, como dióxido de carbono, metano e óxido nitroso) no período analisado. Considerando que o desmatamento na região amazônica está relacionado com a alteração do regime de chuvas na região centro-sul do Brasil através do fenômeno dos “rios voadores”, como descreve Nobre (2016), no relatório O futuro climático da Amazônia, e que pelos aquíferos que abriga (Guarani, Urucuia e Bambuí), o bioma do Cerrado esteja, por oposição à região amazônica, na origem dos “rios subterrâneos”, é possível estimar, por um lado, em que medida a evolução do equilíbrio intersetorial na economia brasileira incorpora as transformações climáticas provocadas pela redução na cobertura florestal no norte e no centro-sul do país. E de outro, a proposta é indicar em que medida o ritmo de desmatamento compõe a condição de equilíbrio na economia brasileira.
Com isso, argumentamos que os esquemas de reprodução de Marx podem ajudar a capturar e mapear os impactos das mudanças no regime climático na economia brasileira. Não se trata de apenas estimar o custo monetário da emissão de gases do efeito estufa, pois a condição de equilíbrio intersetorial não se restringe a apreender fluxos monetários. Embora as progressivas quebras de safra e o encarecimento da produção de alimento se expressem também como fenômenos monetários, sua origem nas mudanças climáticas ficaria sempre encoberta por incontáveis mistificações, dado o processo gradual em que essas transformações aparecem nos preços, se não consideramos a reprodução do capital enquanto processo que é, a um só tempo, material e social, como explica Burkett (2004), em Marx’s reproduction schemes and the environment. É verdade que os esquemas evidenciam o quanto a reprodução do capital depende da unidade entre valor e valor-de-uso que caracteriza a produção capitalista. Mas ao compará-los com os dados do desmatamento dos biomas brasileiros, buscamos enfatizar os aspectos da produção material, em detrimento de sua forma monetária, na relação entre os setores. Mais do que isso, a proposta é que o uso combinado dos esquemas de reprodução de Marx com dados que ajudam a mapear a mudança no regime climático no país sirva como ferramenta de planificação econômica. Como na definição de Martín Arboleda (2021), em Gobernar la utopia, entendemos a planificação enquanto forma mediada de existência do futuro. A tarefa da planificação econômica é a gestão ex ante dos recursos, em contraposição à gestão ex post levada a cabo pelo mercado. E os instrumentos técnicos da planificação não são senão a expressão mediada das visões de futuro. Trata-se aqui, com o estudo combinado da condição de equilíbrio intersetorial da economia brasileira e das transformações do regime climático, de construir a infraestrutura informacional daquilo que Mandarini e Toscano (2020) denominaram, em Planning for conflict, de planejamento para o conflito. Isto é, não se trata de neutralizar as relações antagônicas da sociedade, que se aprofundam com as dificuldades de produção de alimentos decorrentes das mudanças no clima, mas de dar-lhes uma retaguarda institucional.