
Leonardo Segura Moraes1
Atualmente, segue em debate a possibilidade de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) visando regulamentar a redução da jornada de trabalho conhecida como 6×1 (seis dias de trabalho, um dia de folga). Para tanto, a deputada Erika Hilton (PSOL) busca recolher o número suficiente de assinaturas entre os demais deputados federais para protocolar junto à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados a chamada “PEC do fim da escala 6×1”2.
No debate político nacional brasileiro mais recente, essa discussão sobre a redução da jornada de trabalho sem redução dos salários vem sendo feita pelo menos desde as eleições de 2022, em particular através da candidatura da economista e professora Sofia Manzano (PCB)3. Trata-se, na verdade, de um debate que tem sido levantado em várias economias nacionais e inclusive mais recentemente foi testado um programa piloto na Inglaterra, envolvendo 61 empresas e cerca 3 mil trabalhadores, entre julho e dezembro de 20224. Os resultados parecem indicar que a medida não atrapalhou os negócios, pelo contrário, além de sugerir que há uma melhora no bem-estar de trabalhadores que tiveram sua jornada reduzida sem redução salarial5.
Mas como implementar tal política econômica? Será que a aplicação em uma economia capitalista subdesenvolvida de algo experimentado em uma economia capitalista avançada terá os mesmos resultados? Pois bem, aqui está o cerne do problema econômico da questão formulada como título desse texto. Isso porque a economia brasileira não é igual a economia inglesa, o que por si só já deveria suscitar alguma suspeita sobre a possibilidade de sua aplicação tal e qual no Brasil. Ainda assim, quero ressaltar, desde uma perspectiva marxista, outros elementos importantes no intuito de estimular o debate científico sobre o assunto.
Nesse sentido, em primeiro lugar, é preciso compreender a relação entre o todo e a parte que conformam uma determinada economia nacional. Quer dizer, entre o capital individual, o trabalhador individual, e o capital social total, o trabalho social. A mediação entre a parte (capital individual, trabalhador individual) e o todo (capital social total, trabalho social) se expressa em certas tendências gerais que definem as leis econômicas vigentes. Tais leis não são absolutas, mas tendenciais, pois são a resultante das contradições do próprio desenvolvimento capitalista. Sendo assim, há contratendências em operação que podem, sob certas circunstâncias, modificar as leis econômicas vigentes.
Em segundo lugar, temos que entender o que é a jornada de trabalho e como ela se define. Sob o assalariamento, a jornada de trabalho apresenta três dimensões: a intensidade, a duração e como ela se distribui ao longo da semana. Apesar dos contratos de trabalho serem firmados individualmente, há tendências gerais operando na economia brasileira e que resultam em certos elementos definidores de uma totalidade social, tais como, salários médios, jornada média de trabalho (medida em horas), etc. Sem entrar no mérito específico de como se define a jornada de trabalho a nível social – algo que demanda esforço além do objetivo aqui desta entrada -, podemos apenas constatar que tais elementos se definem e desenvolvem de maneira histórico-social. Ou seja, não são eternos nem universais, mas frutos do longo processo de transição de um modo de produção pré-capitalista para um capitalista, o qual, por sua vez, estabelece as leis de funcionamento autorregulado do mercado de trabalho, do mercado de terras e do mercado de dinheiro em uma economia. Esse processo avança em permanente transformação condicionada pela trajetória institucional e caracteriza um determinado desenvolvimento capitalista nacional.
A economia brasileira apresenta especificidades próprias em seu desenvolvimento, que decorrem da natureza invertida do processo de industrialização, se comparado, por exemplo, com a experiência inglesa. Em vez de iniciar por meio de uma diferenciação do departamento de produção de meios de produção (D-I) para então se diferenciar e configurar um departamento de produção de meios de consumo (D-II), como se observou na economia inglesa, o caso brasileiro se dá às avessas. A industrialização, que pressupõe o assalariamento, iniciou-se aqui primeiro constituindo um D-II, cuja expansão dependia da capacidade de exportar meios de consumo e se assentava em uma estrutura econômica dual ou heterogênea (combinação articulada entre o moderno e o arcaico). Isto é, uma economia nacional cuja propagação do progresso técnico entre os ramos da produção se dá de maneira a perpetuar o subdesenvolvimento.
Tal especificidade acarretou a configuração de um mercado de trabalho com características próprias e que conduziram a uma tendência ao subemprego estrutural. O que isso quer dizer? Significa que a tendência dominante no desenvolvimento capitalista brasileiro configura uma totalidade social em que persistem empregos de baixa produtividade, alta rotatividade e precariedade, que efetivamente caracteriza a maior parte do emprego da força de trabalho. Como mudar?
Considerando que o mercado de trabalho em uma economia subdesenvolvida apresenta um desenvolvimento desigual e combinado entre o moderno e o arcaico, para mudar esse cenário teríamos que aprofundar um processo de industrialização capaz de encadear os ramos da produção social de modo que a própria heterogeneidade estrutural pudesse ser superada. Dito de outra maneira, tal processo de industrialização exigiria uma reorientação da acumulação de capital para que o D-I puxasse o desenvolvimento da economia brasileira. Porém, o que se observa é justamente o aprofundamento de um processo de desindustrialização e desnacionalização no Brasil, em particular do D-I, o qual avança desde o final da década de 1980.
A história da economia brasileira revela que tal sentido da acumulação de capital somente ocorreu sob a liderança de empresas estatais e seguindo uma orientação política centralizada, ainda que sem a devida continuidade no tempo. Foi assim ao longo das décadas de 1930-45, sob o comando de Getúlio Vargas, como também no II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), entre 1975 e 1979. Isso porque o capital privado segue a lógica da autovalorização, que para se efetivar não requer uma dimensão de acumulação de capital como a necessária para o desenvolvimento de uma industrialização que encadeie de maneira homogênea a propagação do progresso técnico nos ramos da produção social. A não continuidade de tal orientação da acumulação de capital se deve à natureza subordinada do poder constituído no Estado brasileiro em relação à economia dos EUA, cuja influência sobre a economia brasileira é relevante no que diz respeito às condições de financiamento da produção e da circulação do capital, assim como de acesso à tecnologia.
A mudança estrutural no mercado de trabalho brasileiro que aponte para o fim da tendência ao subemprego estrutural significa elevar o bem-estar da classe trabalhadora, na medida em que ela indique uma tendência à homogeneização do mercado de trabalho em direção às características tendenciais do desenvolvimento capitalista. A redução da jornada de trabalho é uma tendência modernizante que o progresso técnico das forças produtivas tem apontado. Para tanto, tal processo de industrialização deveria aumentar o grau do controle social sobre a economia brasileira, refletindo uma maior capacidade da política econômica controlar os ciclos econômicos de maneira duradoura e difundir homogeneamente o progresso técnico, de modo a possibilitar uma discussão real sobre o aproveitamento social do incremento das forças produtivas no sentido de criar condições sociais para uma redução da jornada de trabalho sem redução salarial.

Mas pode uma mudança jurídica, via PEC, por exemplo, alterar o estado de coisas? É claro que as leis econômicas se definem também por meio do Estado, mas não é o Estado que as estabelece, em particular um Estado estruturado na “livre” concorrência econômica e política. Em uma sociedade de mercado, as leis sociais, em particular as econômicas, também expressam sua substância no Direito constituído, muito embora haja um permanente descompasso dado pela própria finalidade autoexpansiva de uma economia moderna contrastar com a relativa fixidez da superestrutura jurídico-política. Nesse sentido, mudar juridicamente uma lei econômica não vai necessariamente ter o resultado que se espera, pois há determinações estruturais que dizem respeito à configuração do mercado de trabalho brasileiro. Dada a tendência ao subemprego no mercado de trabalho brasileiro, uma mera mudança jurídica pode apenas conduzir o conjunto das relações de produção para uma adaptação dentro da ordem vigente sem realmente transformá-la.
Na atual conjuntura em que a Reforma Trabalhista de 2017 flexibilizou e regulamentou modalidades de relações de trabalho como o trabalho intermitente, o nível de sindicalização da classe trabalhadora segue em baixa e há uma crescente transformação do assalariamento por tempo (CLT) para o assalariamento por peça (trabalho em plataformas digitais), imaginar que uma lei jurídica proibindo a escala 6×1 da jornada de trabalho terá alguma efetividade na elevação do bem-estar da classe trabalhadora é como imaginar que a meritocracia tem alguma relevância para determinar o salário médio no mercado de trabalho. Mais do que isso, se o Projeto de Lei Complementar 12/2024 (PLC 12/2024) for aprovado, trata-se de um desdobramento da Reforma Trabalhista de 2017, pois ao não reconhecer a relação entre trabalhador e plataforma digital como assalariamento, indiretamente prevê que o tempo de trabalhadores à disposição das plataformas digitais, além das corridas e entregas, também é tempo de trabalho sob a forma de “prestação de serviço”6.
Como demonstrou o sociólogo Francisco de Oliveira em seu ensaio O Ornitorrinco, de 20037, o exército industrial de reserva, necessário em qualquer economia capitalista, constitui-se de maneira peculiar na economia brasileira e cumpre um papel de assegurar o rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho, em particular nas cidades. Esse é um dado estrutural da economia brasileira e que não pode ser transformado por meio de uma lei jurídica que o proíba de ser como tal.
Para que possamos realmente avançar na orientação política de reduzir a jornada de trabalho – uma luta histórica e legítima da classe trabalhadora – é preciso compreender o funcionamento da economia capitalista brasileira. Para tanto, a análise dos esquemas de reprodução a partir da teoria econômica de Marx nos revela a centralidade do crescimento do departamento de produção de meios de produção (D-I), seja pela quantidade de valores mobilizados, seja pela capacidade de encadear os ramos da produção social. Isso se mostra de maneira mais evidente no caso da economia brasileira. Nesse sentido, temos inúmeros exemplos de empresas que poderiam ser reestatizadas por razões socioambientais, como a Vale S.A., a Braskem e a Enel, para citar algumas. É importante destacar também o caso da Petrobras, sendo que 1/4 da empresa pertence a um fundo sediado em Nova Iorque, nos EUA, (BlackRock), e está em discussão a possibilidade de extração de petróleo em área de elevado risco (Faixa Equatorial). Quem vai ganhar com isso? Vamos extrair petróleo sob elevado risco socioambiental para rentabilizar capital estrangeiro a troco de que?
Ao longo desse processo de aumento do controle social sobre o D-I da economia brasileira, o próprio regime de governança poderia ser discutido, contribuindo não só para incrementar o controle social sobre a economia brasileira, como também aprimorando os mecanismos de engajamento político da classe trabalhadora.
- Professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (IERI/UFU). ↩︎
- Ver https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/11/11/pec-6×1-deve-ter-assinaturas-suficientes-nesta-semana-diz-erika-hilton.htm ↩︎
- Ver https://www.youtube.com/watch?v=78dCexItkvM ↩︎
- Ver http://programa piloto no Reino Unido envolveu 61 empresas de diversos setores e quase 3 mil trabalhadores entre julho e dezembro de 2022 ↩︎
- Ver https://jornal.usp.br/?p=630473 ↩︎
- Ver https://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Projetos/Ato_2023_2026/2024/PLP/plp-012.htm ↩︎
- Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4407845/mod_resource/content/1/%5BOliveira%20F%5D%20O%20Ornitorrinco.pdf ↩︎